Carta dos direitos fundamentais digitais da União Europeia

A internet e a digitalização fazem parte de quase todos os espaços das nossas vidas e relações. A rapidez do desenvolvimento das tecnologias ultrapassam muitas vezes o ritmo de políticas públicas e marcos regulatórios. 

 

No contexto de nossa aproximação ao tema da digitalização, apresentamos uma iniciativa interessante sobre os direitos fundamentais digitais que estão sendo debatidos na Alemanha e em toda Europa. Um grupo de cidadãs e cidadãos europeus, acompanhado pela Fundação ZEIT Ebelin e Gerd Bucerius, está elaborando e lançando um documento base sobre esses direitos (acesse a lista de autores aqui). O tema tem sido discutido há dois anos nas redes. Fazem parte deste grupo pessoas dos campos das mídias, comunicação, academia e também de alguns partidos, entre elas alguns membros do partido verde alemão. 

 

Depois de dois anos de debate intenso e público na rede, a nova versão da carta foi apresentada em abril de 2018, no Re:publica Berlin, a maior conferência sobre internet e a sociedade digital da Europa. Além disso, a carta também foi publicada  Assim, a carta quer dar um apoio especifico ao debate sobre os direitos digitais onde quer que esse debate esteja vigente.

 

Aqui no Brasil estão sendo discutidos os mesmos temas e necessidades. Talvez os debates de lá também sejam úteis aqui. Por isso convidamos para a leitura e comentários sobre a carta. 

Participação ativa de jovens na maior conferência sobre internet e sociedade digital da Europa.
Teaser Image Caption
Re:publica Berlin - maior conferência sobre internet e a sociedade digital da Europa

Carta dos direitos fundamentais digitais da União Europeia


Versão de 2018

PREFÁCIO

ESTE PROJETO de uma Carta Digital surgiu a partir da convicção de que os debates sobre direitos fundamentais na era digital devem ter um resultado. Queremos fortalecer e concretizar os direitos fundamentais já existentes.

NÓS, AUTORAS E AUTORES, consideramos isso necessário, pois o desenvolvimento tecnológico traz consigo novos desafios e tarefas para o Estado.

ESTES surgem a partir de novas formas de automatização, interligação, inteligência artificial, previsão e controle do comportamento humano, monitoramento de massa, robótica e a interação humano-máquina, bem como da concentração de poder por parte de atores estatais e não-estatais.

A CARTA DIGITAL é um manifesto político na forma de um texto semelhante a uma lei. Além de sugestões para futuros direitos fundamentais, ela contém também objetivos estatais e possíveis solicitações aos legisladores europeus que, em seu conjunto, devem compreender o tamanho dos desafios e a importância dos direitos civis na era digital.

APÓS DISCUSSÕES INTERNAS E PÚBLICAS, apresentamos aqui o projeto revisado de uma Carta que deve amadurecer ainda mais ao ser publicada. Nós nos empenhamos para que com ela surja um processo social e político que desemboque em um documento obrigatório de direitos fundamentais.

Versão 2018

PREÂMBULO

NA CONSCIÊNCIA DE QUE: 
o reconhecimento da dignidade inata e dos direitos iguais e inalienáveis de todo ser humano compõe a base da liberdade, da justiça e da paz no mundo,
a crescente digitalização leva à mudança das bases da nossa existência,
na era digital ocorrem enormes deslocamentos de poder entre indivíduos, Estado e empresas,
na era digital surgiu e se perpetua um debate na sociedade civil,
direitos fundamentais e princípios básicos democráticos na era digital se defrontam com novos desafios e ameaças,
o progresso tecnológico sempre deve estar a serviço da humanidade,
a construção do mundo digital também deve ser uma tarefa europeia, para que na Comunidade Europeia seja possível preservar a liberdade, a justiça e a solidariedade no século XXI;

NO RECONHECIMENTO:
da Declaração Mundial dos Direitos Humanos,
da Convenção Europeia de Direitos Humanos,
da Carta de Direitos Humanos da União Europeia,
dos Padrões de Proteção aos Direitos Fundamentais e aos Dados da União Europeia e de seus Estados Membros;

FIRMEMENTE DECIDIDOS:
a proteger os direitos fundamentais e princípios democráticos também na era digital por meio da primazia do Direito,
a comprometer atores estatais e não estatais para a validação dos direitos fundamentais na era digital,
a criar, dessa forma, o fundamento para um Estado de direito na era digital,
a compreender o meio digital não como fonte de medo, mas sim como oportunidade para uma vida boa em um futuro global;

A UNIÃO RECONHECE OS DIREITOS, LIBERDADES E FUNDAMENTOS APRESENTADOS A SEGUIR:

ART. 1 (DIGNIDADE)
A dignidade do ser humano permanece intocável também na era digital. Ela deve ser respeitada e protegida. Nenhum desenvolvimento técnico pode ameaçá-la.

ART. 2 (LIBERDADE)
Todo ser humano tem o direito à livre informação e comunicação. Isso inclui o direito pessoal de não saber.

ART. 3 (IGUALDADE)
(1) Todo ser humano tem direito a uma participação igualitária na esfera digital. Vale a vedação à discriminação formulada na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia.
(2) O uso de procedimentos automatizados não pode fazer com que seres humanos sejam excluídos do acesso a bens, serviços ou da participação na vida social. Isso vale especialmente nas áreas da saúde, proteção de riscos elementares à vida, ao direito ao trabalho, a moradia, à liberdade de ir e vir e frente à Justiça e à polícia.

ART. 4 (LIBERDADE DE OPINIÃO E PUBLICIDADE)
(1) Todo ser humano tem direito a expressar livremente sua opinião no mundo digital. Não ocorre censura.
(2) Esse direito é restrito pelas determinações das leis gerais.
(3) Operadores de espaços discursivos públicos são responsáveis pela proteção da liberdade de opinião. Eles devem garantir a observância dos direitos fundamentais e obrigações relacionados nesta Carta conforme a lei.

ART. 5 (SISTEMAS E DECISÕES AUTOMATIZADAS)
(1) Princípios ético-normativos só podem ser propostos por seres humanos, e decisões que atinjam direitos fundamentais só podem ser tomadas por seres humanos.
(2) Pessoas físicas ou jurídicas devem assumir responsabilidade por decisões automatizadas.
(3) Deve-se divulgar os critérios de decisões automatizadas, como na formação de perfis.
(4) Quem estiver submetido a decisões automatizadas de importância significativa para sua vida tem o direito à verificação e a decisões independentes por seres humanos.
(5) Decisões sobre a vida, a integridade física e a privação da liberdade só podem ser tomadas por seres humanos.
(6) O uso da inteligência artificial e da robótica em áreas relevantes para os direitos fundamentais deve ser acompanhado pela sociedade e regulado pelo legislador.

ART. 6 (TRANSPARÊNCIA)
(1) Todo ser humano tem direito ao acesso a informações de órgãos estatais. Deve-se garantir a proteção principalmente de dados pessoais. O mandamento da transparência vale também com relação a particulares que assumam tarefas públicas.
(2) Deve-se proteger apropriadamente denunciantes que divulguem informações sobre o comportamento incorreto de uma organização.

ART.7 (ESFERA PRIVADA, CONFIANÇA E PROTEÇÃO DE DADOS)
(1) Todo ser humano tem direito à proteção dos seus dados e ao respeito à sua esfera privada.
(2) Dados pessoais só podem ser coletados e processados de boa fé para fins determinados à pessoa afetada, e se existir base legal para tal. O processamento dos dados deve ser concebido de forma segura, justa, transparente e segundo o estado da arte.
(3) Deve-se garantir direitos à exclusão, correção, contradição, informação e divulgação.
(4) Todo ser humano tem direito a um recomeço digital. Esse direito fica restrito aos interesses de informação justificados do público.
(5) Todo ser humano tem direito a viver em sua residência livremente e sem ser observado.
(6) Todo ser humano tem direito a proteger seus dados e comunicações por meio da escolha de meios apropriados contra a tomada de conhecimento de terceiros.
(7) Não deve haver monitoramento sem motivo.
(8) O respeito a esses direitos será monitorado por órgãos independentes.

ART. 8 (SEGURANÇA DE SISTEMAS DE TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO)
Deve-se assegurar a integridade, confiabilidade e integridade de sistemas e infraestruturas de tecnologia da informação e garanti-las de maneira técnica e organizacionalmente apropriada.

ART. 9 (ELEIÇÕES)
O direito a participar de eleições e plebiscitos públicos não pode estar atado ao uso de mídias digitais.

ART. 10 (ACESSO LIVRE)
(1) Todo ser humano tem direito ao acesso livre e igualitário a serviços de comunicação e informação sem que para isso tenha que abrir mão de direitos fundamentais.
(2) Esse acesso deve ser garantido de maneira ampla, apropriada e suficiente.
(3) Todo ser humano tem direito a um uso não-personalizado de ofertas digitais. Restrições só podem ocorrer mediante fundamentos legais.

ART. 11 (NEUTRALIDADE DA REDE)
Deve-se garantir a neutralidade da rede sem discriminação.

ART. 12 (PLURALIDADE E CONCORRÊNCIA)
(1) Deve-se estimular a pluralidade e a diversidade cultural no mundo digital.
(2) Deve-se estimular e privilegiar a interoperabilidade e padrões abertos.
(3) Deve-se impedir efetivamente comportamentos abusivos de mercado.

ART. 13 (PESSOAS COM NECESSIDADES ESPECIAIS DE PROTEÇÃO)
Crianças, adolescentes, pessoas discriminadas e com necessidades especiais de proteção desfrutam de proteção especial no mundo digital. Sua participação no mundo digital deve ser estimulada, e deve-se garantir seu acesso a bens e serviços elementares.

ART. 14 (EDUCAÇÃO)
Todo ser humano tem direito a uma educação que propicie uma vida autodeterminada no mundo digital. Esse objetivo tem importância central nos currículos de instituições de ensino.

ART. 15 (TRABALHO)
(1) A mudança de estrutura digital deve ser concebida segundo fundamentos sociais.
(2) Na era digital deve-se garantir a proteção efetiva do trabalho e a liberdade de associação.

ART. 16 (BENS IMATERIAIS)
(1) Todo ser humano tem direito a participar da vida cultural e do progresso científico e suas conquistas.
(2) Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses espirituais e materiais que surgem da criação e disseminação de bens imateriais. Isso deve ser equilibrado com os interesses da comunidade, do progresso tecnológico e dos processos criativos na sociedade, na economia, na ciência e na arte.

ART. 17 (ÁREA DE VIGÊNCIA)
(1) Esta Carta vale para órgãos, instituições e outras entidades da UE e seus estados membros.
(2) Os direitos e princípios desta Carta valem também com relação a atores não estatais. Nesse caso, deve-se considerar os direitos fundamentais desses atores.

ART. 18 (DISPOSIÇÕES FINAIS)
(1)
A interpretação dos direitos contidos nesta Carta compete em última instância ao Tribunal Europeu de Justiça.
(2) Toda restrição no exercício dos direitos aqui reconhecidos deve ser prevista em lei, corresponder ao fundamento da proporcionalidade e respeitar o conteúdo essencial desses direitos. Para o restante dos casos, valem os artigos de 52 a 54 da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia.

Original da carta publicado em alemão e inglês aqui pela Fundação Zeit Ebelin e Gerd Bucerius 

Acesse a lista de autores da carta aqui